quarta-feira, agosto 03, 2005

LIVROS QUE NOS FAZEM LER

À conversa com Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada



Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada trabalham juntas há mais de vinte anos, numa parceria que tem somado sucessos literários com quase meia centena de volumes da colecção Uma Aventura, e não só.

Além dos projectos de literatura para jovens e crianças da editorial caminho, Ana Maria Magalhães, entre as aulas de português e história ainda arranja tempo para colaborar com a Editorial do Ministério da Educação em publicações destinadas a Timor-Leste e aos PALOPs.

Isabel Alçada depois de trabalhar na reforma do ensino Secundário em 1974/75 deu aulas. Mais tarde fez o mestrado em Sociologia da Educação, em Boston. Coordenou a equipa que lançou a rede de bibliotecas escolares e, actualmente, é professora na Escola Superior de Educação de Lisboa.

Como surgiu a ideia da colecção Uma Aventura?
Ana Maria Magalhães (AMM)
Quando nós começámos, em 1982, não havia livros com personagens com que as crianças se pudessem identificar. A vida numa escola portuguesa é muito específica e ao escrevermos uma aventura na escola queríamos que os alunos sentissem «aqui está a minha escola», «a minha rua», ou «a minha cidade». Queríamos tratar de assuntos contemporâneos.
A multiculturalidade também se reflecte nas histórias?
AMM
Temos personagens cabo-verdianas que aparecem com toda a naturalidade como acontece na escola, onde não têm um tratamento à parte. Fizemos uma aventura em Cabo Verde a pedido do Instituto do Livro de Cabo Verde porque lá os nossos livros são muito lidos.
Isabel Alçada (IA) Outra intenção foi dar às crianças cabo-verdianas que nasceram cá e nunca foram à terra dos pais, a possibilidade de com o livro estabelecer uma relação com a país de origem.
Também poderão aparecer, por exemplo, personagens ucranianas?
IA
Eventualmente, podem aparecer. Muitas vezes aparecem e nós não sabemos muito bem de onde. Está no nosso íntimo e depois reflecte-se na nossa escrita.
E como é o processo de criação?
AMM
Fazemos um plano e visitamos os sítios onde se passa a história para vermos as mesmas coisas. Uma está atenta a uns aspectos e a outra a outros. Portanto, há um trabalho prévio. Podemos inflectir para outros caminhos, mas temos de ter um plano. Depois sentamo-nos à mesa e trabalhamos juntas como duas pessoas que assistiram a uma reunião e vão fazer uma acta. Conversamos e vamos escrevendo.
IA Nós temos a particularidade de nos sintonizarmos tão bem que quando temos, cada uma, uma ideia se começamos a conversar daí a bocado já temos dez ou vinte, e então temos de nos disciplinar. O que fazemos é guardar essas ideias para outras histórias.
O vosso público preferencial são só os adolescentes?
AMM
Nós agora temos três grandes grupos. A ‘uma aventura’ foi feita para os 10 e 11 anos, depois fizemos livros para os mais pequeninos e para adolescentes propriamente ditos. Também temos as ‘Viagens no Tempo’ que são romances históricos, dois diários para adolescentes que tratam das saídas à noite e dos problemas com os pais, e a divulgação histórica. Uma história da Idade Média com o professor Matoso e outra dos Descobrimentos com o professor Albuquerque.
IA Quando começámos tínhamos muitos leitores no 2º ciclo e agora temos montes de leitores no 1º ciclo com os mesmos livros, porque os professores estimulam muito e os pais também dão importância a esta questão da leitura. Houve uma evolução positiva, embora estejamos ansiosos que a evolução seja mais rápida.
Como decorreu a adaptação da colecção uma aventura à televisão?
IA
Primeiro fizeram uma série com catorze episódios, cada livro tem dois episódios de televisão e durante o ano lectivo passaram quatro vezes, o que foi uma coisa que nos deu bastante satisfação. Nós apenas fizemos a revisão dos guiões, pois tínhamos sobretudo a preocupação de que espírito da história se mantivesse, o que foi muito bem conseguido.
A preocupação em escrever histórias portuguesas revela uma particular atenção à questão do ensino. Como evoluiu a aprendizagem da literatura e da língua portuguesas?
IA
Agora há muito mais a preocupação de criar outros estímulos para além da aula que fomentem essa aprendizagem. Por exemplo, o incentivo às famílias para que promovam a leitura dos mais novos e o interesse pelos livros fora do tempo de aula, a criação de bibliotecas...
Isso já não sucedia antes?
IA
Não, não sucedia, quando eu era aluna, primeiro as escolas não tinham biblioteca, se havia os alunos não as frequentavam e às vezes até se desincentivava a leitura lúdica, a não ser em férias. Os professores e pais achavam que só se devia ler o que era para estudar. Lia-se para aprender e não para gostar de ler nem para se tornar um leitor, pois não se valorizava o desenvolvimento intelectual que a leitura proporciona.
AMM A leitura estava muito cheia de interdições. Havia colecções para raparigas e para rapazes, e era só para as férias, pois estávamos muito agarrados aos manuais.
E em relação aos conteúdos?
IA
Diversificou-se muito. Abriu-se a possibilidade de qualquer autor ser lido numa aula de português ou de literatura. Toda a literatura lusófona entrou nas selectas.
AMM Mas há um pormenor, o ensino era muito elitista. No exame de admissão uma das provas era um ditado em que quem tivesse mais de cinco erros ficava chumbado independentemente das outras classificações. Agora a filosofia é outra, a escola é para todos e o objectivo é o de proporcionar aos alunos aquilo de que são capazes de absorver.
Os alunos são hoje muito diferentes?
IA
É uma diferença enorme. Há uma diversidade total. A escola é um bom testemunho da nossa sociedade; há crianças de todos os meios, de todas as etnias...
O que dificulta a tarefa do professor. ..
Exactamente. Se tiver uma enorme heterogeneidade numa sala de aula é muito difícil de gerir a situação e fazer com que todos aprendam.
Isso tem a ver com a capacidade do professor ou também com aquilo que ele tem de ensinar?
IA E também a ver com a organização do sistema, tem a ver com as três coisas.
AMM O sistema tem de se aperfeiçoar para corresponder à diversidade. Ainda não se encontrou o modelo certo que possa servir a cada um, conforme o que pode dar. Eu era uma óptima aluna na área das letras e péssima nas matemáticas, o que não me fez falta nenhuma. Enquanto adorei uma coisa que toda a gente detestou que foi dividir orações n’ Os Lusíadas. Desde cedo estive sensibilizada, ou atenta a que não se pode pedir o mesmo a todos. Até costumo dizer que temos todos o terror da clonagem, mas na escola parece que queremos clonar as pessoas, temos que ser todos iguais.
A redução do número de alunos por turma ajudaria?
IA
Sim. O único impedimento é financeiro. A melhor situação de aprendizagem é quando um adulto ensina uma criança. Aprende sempre. Por isso é que as explicações resultam sempre.
O problema é financeiro ou da capacidade de gestão?
IA
É financeiro. O nosso país está numa etapa de desenvolvimento educacional que precisava que muitas turmas tivessem muito poucos alunos. Além disso há escolas muito pequenas e isoladas, onde não há um ambiente estimulante nem para ensinar, nem para aprender. Gasta-se mal, tem de se gerir de outra maneira
No sistema dinamarquês uma criança que revele mais competência numa área tem mais tempo dessa área, seja na música ou na matemática.
AMM Nós aqui fazemos ao contrário, se alguém revela uma dificuldade além das horas em que se sente torturado ainda leva mais horas e acaba por rejeitar a disciplina, a escola e, às vezes, o mundo. Parece um absurdo mas é o que se faz.

O que há de mais gratificante em ser professor?
IA
É vê-los reagir demonstrando que aprenderam. O que um professor quer é que um aluno aprenda. Adquira informação e aprenda a pensar melhor. A minha satisfação maior é quando além de os ver a aprender gostarem de aprender, ver o brilho nos olhos é o essencial quando despertam para assuntos que sozinhos não teriam descoberto.
AMM Nas aulas de português fazemos um trabalho no início do ano que repetimos no fim para eles compararem. E são eles próprios que sentem uma grande alegria, por verem que valeu a pena estarem ali aquele ano comigo, pois verificam que escrevem melhor e com um vocabulário mais rico.
Qual é a melhor forma de cativar os adolescentes para a leitura?
AMM
Ler com eles livros que lhes digam alguma coisa. O que se passa hoje é que as leituras que são feitas não consideram o percurso anterior, o que é um disparate. Assim como um ginasta não pode começar por fazer um salto mortal, na literatura é preciso que se considere o interesse do aluno e o seu grau de desenvolvimento. Ao se obrigar a estudar Os Lusíadas a quem não sabe escrever uma carta, o mais que se consegue é que crie ódio à leitura. O que se passa é que fingem que lêem e fazem fichas de leitura aldrabadas. Ignorar os problemas nunca ajudou a resolvê-los.
É verdade que quem faz um percurso na área das ciências tem de ter conhecimentos de literatura, mas não tem que estudar o mesmo que alguém que vai seguir literatura portuguesa. A homogeneidade de conteúdos que hoje existe vira-se contra os alunos, contra os professores e contra os autores.
IA Há certos autores que são essenciais num percurso de literatura, agora de língua portuguesa não. Saber quem foi Camões e qual é o significado d’ Os Lusíadas na cultura portuguesa toda a gente deve saber. Saber do que trata, ler um pouco para conhecer o tipo de obra que é, mas para trabalhar todo não pode ser.
Que outros autores poderiam interessar?
IA
Primeiro há que procurar em função da turma concreta que se tem. O professor de português tem uma preparação de base que lhe permite escolher as leituras mais adequadas. Mas os programas impingem livros e obras, o que não devia acontecer. Há uns anos fizemos um inquérito aos professores de língua portuguesa que rejeitaram a existência de obras obrigatórias, ou sequer recomendadas.
AMM Se for uma disciplina de literatura é diferente, pois tem de ter etapas a percorrer, mas se é de língua portuguesa o professor deve poder escolher o livro que melhor convém àqueles alunos. Livros com os quais se sintam bem e adiram, mas podem-se utilizar textos desde o Fernando Pessoa ao Saramago, o Eça de Queiroz o Camilo Castelo Branco, o Torga, o Régio, tudo, para sensibilizar a determinado género, e numa turma de 20 ou 30 há um aluno que fica seduzido pela prosa do Eça ou do Fernando Pessoa, e então vai ler. O uso de textos curtos pode ser de qualquer autor, mas a escolha de uma obra completa pode não resultar.
IA O que é grave é que é suposto que estamos a ler para ter prazer mas estamos a fazer um sacrifício. Aqueles que na escola poderiam pela primeira vez descobrir o prazer de ler se calhar perdem para sempre a oportunidade de aderir à leitura.


Alexandre Dias
Entrevista realizada em 9 de Novembro de 2001
Publicada na Revista de Domingo do diário Correio da Manhã

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