quinta-feira, novembro 24, 2005

MERGULHO

Um, dois, três e salto de chamada... Lanço-me no ar em plena queda livre, plano o vento rumo ao chão duro. O ar quente passa-me pelas orelhas e faz aquele ruído de motor de avião a roncar ao longe.

As luzes dos carros lá em baixo dizem-me que o dia já fechou. Os olhos fecham-se em lágrimas empurradas pela força da pressão da deslocação.
O burburinho da cidade cresce para um murmúrio cada vez mais estridente, sem nexo.

O alcatrão negro aproxima-se, mas está ali um carro... arranca e deixa-me livre um espaço.

Consegui manter uma posição vertical e os braços abertos esticados juntam-se agora para baixo, por cima da cabeça.

Mergulho no pavimento.
Os braços desintegram-se. Os ombros desconchavados rasgam o tronco até à anca e riscam faíscas pelas pernas até aos pés.
Liberta-se um ruído chiado de guilhotina. O estalo da lâmina fria solta por fim a cabeça imulada numa bola de fogo.

domingo, novembro 20, 2005

LIVRE

Hoje, acordei e percebi qual era o meu problema!
Levantei-me, fui até à cozinha, mas não tinha nenhuma faca de jeito. Saí porta fora, desci as escadas e fui até à loja em frente.
Comprei detergente da roupa com um brinde de uma faca. Uma boa faca, que um qualquer inteligente marketista se lembrou para promover o pó branco.

Voltei para casa. Entrei e fui até à casa de banho. Lavei os dentes e, não antes de recitar uma oração budista para estancar o sangue, peguei na faca nova acabada de trazer da loja (estava um bocado gordurosa, com sarro) e com a ponta arranquei os olhos.

De facto, nenhum sangue jorrou. Mesmo assim, puxei de quatro pensos rápidos e tapei os buracos inaugurados com dois pensos em cada um, assim em forma de xis.

Resolvi o meu problema. Deixei de ter olhos para ver o mundo. Sou livre!
Agora só falo, digo, penso e vejo aquilo que os outros me disserem para falar, dizer, pensar e ver.

BOLO PODRE

A desilusão bebe café com a verdade todas as manhãs naquele café perfumado de sovaco e fumo de cigarros.

Bebem café e no fim não se despedem.
Olham lá para fora, e num esgar de desprezo e temor dizem uma para a outra:
- Nah, é melhor ficarmos por aqui...!

São duas tontas com medo do mundo.
Esqueceram todas as palavras.E só sabem repetir uma para a outra, incessantemente e em silêncio:
Desilusão – já estou em todo o lado, por isso, fico aqui.
Verdade – estou esquecida, não sei o que sou, é melhor ficar por aqui.

NO PEARLS FOUND

Ela ganhou o prémio da mais bonita... quando era bonita.
Percorreu aquele caminho de terra batida ladeado de erva fresca, flores e árvores grossas.
Era a subir, sempre a subir.

Chegou à porta do palácio e estas abriram-se deslizando sem ruído algum.
Uma aragem gelada veio de dentro e chocou com o calor pesado e húmido do exterior.

Ela deu três passos e sentou-se na mesa de banquetes.
Serviram-lhe ostras. Ostras e mais ostras.

Consta que por lá continua a chupar o suco marinho e a mastigar sôfrega o molusco salgado.

But no pearls were found!!!!

MULHER, PROCURA-SE

Procura-se rapariga prendada que goste e saiba cozinhar lavar e coser para o namorado. Que não se importe de levar um estalo de vez em quando, que se convença que teve orgasmo mesmo que esteja a fingir, e saiba limpar entre os dedos dos pés com a língua.


Procura-se jovem rapariga educada, mas com pouca instrução. Não precisa gostar de cozinha, basta que não se importe de lá passar a vida.

Procura-se garina muito puta, mas lavadinha. Que saiba rapar o púbis e o mantenha lisinho sempre, mesmo para os amantes e o porteiro do prédio em frente.

FATO-DE-MACACO

Aquele fato-de-macaco cinzento, com manchas pretas e de outras cores quentes, estava largado em cima de um banco corrido.

Há minutos saíra de um cacifo onde abafou durante dezasseis horas.
A porta metálica empenada abriu-se em estrondo seco, a mão grossa e peluda puxou-o pesada pelo hábito do movimento e largou-o no banco.
Ouviram-se passos, um ruído estridente salpicado pelo urinol, e os passos, sem vida, voltaram.

O fato-de-macaco cinzento, amarrotado, ganhou forma esticado pelos ombros e calcanhares de um corpo gordo e largo.

SANGUE SECO

No dia em que a morte acordou, o dia estava cerrado numa noite de breu e gelo.

A torre de Babel sofrera de um colapso mental que matou o ruído e a linguagem. Os pigmeus continuaram a construí-la até cobrirem o dia do céu numa noite de breu e gelo.

A morte dormia.

Deus estava acordado.
De olhos esbugalhados assistiu à invasão dos seus domínios. Durante trezentos mil anos de buracos negros puxou pelos cabelos sem perceber a razão daquele silêncio que deixava os pigmeus ocupados na construção das paredes que cresciam até ao seu quintal!

A morte acordou.
Levantou-se, passou a mão pela barba, caminhou ensonada até à casa de banho e abriu a porta de espelho por cima do lavatório.
Do respirador vinha uma aragem que lhe arrepanhou a nuca, alastrou como uma coroa pelas orelhas e desceu da testa para o nariz.
Um arrepio puxou-lhe um espirro do fundo da garganta empurrado pelas tripas do abdómen. A cabeça disparou para a frente e rasgou a cara na quina da porta de espelho.

O sangue estava seco.

VAGABUNDO

Era um vagabundo.
Era um vagabundo muito normal. Feio, porco, mal cheiroso.
Desceu as escadas da estação do metro até ao cais.
Aí, esperou..., esperou..., veio um comboio e de repente espirrou.

O corpo estremeceu como que sacudido pelo chão, saltou pelo ar e caiu de cabeça nos carris. A carruagem bateu-lhe no crâneo e descarrilou.

O vagabundo levantou-se aborrecido. A pressão das rodas de ferro na cabeça fizeram-no cerrar os dentes com tanta força que lhe saltou um molar pelo ouvido.

Foi então que percorreu o túnel à procura do dente podre.

quinta-feira, novembro 10, 2005

Pedro Carneiro mais eu!!

Impulsos

terça-feira, novembro 01, 2005

ALICE


Desespero, obsessão e resignação são os sentimentos que Mário percorre pelas ruas de Lisboa na vã esperança de encontrar a filha Alice.

Ora repetindo o trajecto do dia em que a menina desapareceu, ora instalando 11 câmaras em diversos pontos da cidade, o pai de Alice naufraga há quase 200 dias numa anestesia brutal provocada pela dor da perda, pela dor grotesca da ausência de uma pessoa que se ama e é indefesa.

A descrença total na acção policial, o conformismo perante o interesse e desinteresse canibalesco dos meios de comunicação social, o passar dos dias, a busca alucinante por sinais e pistas, corroem o espírito da vontade de viver e em simultâneo alimentam a persistência autofágica da esperança.

Rodeado de amigos que lhe cedem a janela da casa, o telhado do prédio, ou a varanda da sobreloja onde trabalham, e até as câmaras do aeroporto, Mário constrói uma rotina obsessiva de gravação e substituição de cassetes, visionamento de imagens, impressão de fotos de crianças que passam na rua, mas sem nunca encontrar a filha...

Os amigos estão sempre disponíveis, mas todos sabem que aquilo é doentio, que não leva a lado nenhum. Todos sabem mas não o verbalizam. Dizem-no com os olhos, com os trejeitos da cara, com a aceitação incondicional de quase nunca o questionarem.

O desempenho de Nuno Lopes, envolvido por uma fotografia que nos dá uma visão amassada da cidade e da hostilidade nauseante dos subúrbios, transportam o espectador a um estado emocional de partilha da dor daquele pai e do desesepero atordoador que a mãe, a actriz Beatriz Batarda, liberta em explosões de desvario.

O filme chega ao fim e estamos todos resignados.

A plateia levanta-se pesarosa quando as luzes se ligam.

Fica a perplexidade da impotência esmagadora perante a tragédia da ausência da filha desaparecida, do despojamento imposto do amor!

Este filme de Marco Martins não serve para entreter. O realizador e autor do argumento, mais do que usar o tema do desaparecimento de uma criança para fazer um filme, trabalha uma realidade vivida por milhares de pessoas por esse mundo fora.

É uma tragédia que ignoramos e continuamos a ignorar porque ainda só aconteceu aos outros.

Ao visionar ALICE somos envolvidos por uma experiência estética que nos absorve a sensibilidade física e psíquica, consequência da luz, do grão, da música, da obsessão do pai, do desespero da mãe, da dor transfigurada na cara do colega, o actor Miguel Guilherme, que quase sem falar, sem muito dizer, nos antecipa, qual coro grego, com o peso do cenho dorido a evidência final de ceder à resignação.

Ao visionar ALICE, ficamos a saber que marcámos encontro com uma obra de arte onde a catarse não é possível...

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