segunda-feira, setembro 05, 2005

O gulag saramaguiano

É sabido que se avaliarmos o tamanho de um livro, não pelo número de páginas, mas pelo tempo necessário a compreendê-lo, poder-se-á afirmar de muitos livros, que seriam muito mais pequenos se não fossem tão pequenos.

O mesmo se passa com o “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago levado à cena pelo Teatro O Bando, no Trindade. A banalidade com que é glosada a natureza humana, exposta à alienação em que vive o quotidiano, e as reações vorazes perante situações limite de hostilidade, retoma sem qualquer profundidade questões fundamentais da Cultura Europeia.

A epidemia alastra pela cidade até que todos deixam de ver. Entretanto, os primeiros a cegar são rapidamente internados em campos de concentração, onde ficam isolados sob pena de serem mortos se tentarem fugir. Os regulamentos de funcionamento deste gulag são fastidiosamente repetidos pelos guardas do campo e por uma voz off que relembra que tudo é feito a “bem da nação”. A paranóia de isolar os diferentes/dissidentes a bem da nação remetem para uma reminiscência que reflecte uma miscelânia da ideologia do Estado Novo e, por exemplo, dos regimes totalitários soviético e nazi.

O “Ensaio sobre a cegueira” de Saramago é portanto uma versão apressada, embora loquaz, de narrativas ancestrais como a “alegoria da caverna” platónica inserta na Politeia, ou se se preferir República, acessível em língua portuguesa pela tradução da Professora Maria Helena da Rocha Pereira, e editada pela Fundação Calouste Gulbenkian.

O espaço cénico em que o elenco contracena deslumbra mais uma vez pela apresentação de uma estrutura insólita. Uma rampa cilíndrica onde as personagens se movimentam, por vezes, em evidente esforço físico, talvez excessivo, mas com evidentes efeitos dramatúrgicos.

Uma visibilidade alargada fica garantida a todos os espectadores, mas que mais do que isso transmite uma sensação de esmagamento, porém, longe do assombro apocalíptico que o teatro pretende produzir - a desinquietação catártica da plateia. Pois, tal resultado, depende essencialmente da palavra inaugural, quando não reduzida a plagiadora, do texto que é dito.

De facto, a sensação que fica é de que os actores levantam voo e levam consigo o público, apesar do arrazoado que entoam.

Ensaio sobre a Cegueira
Teatro da Trindade
2 de Setembro de 2005

Texto publicado no Culturweb a 5 de Setembro de 2005

Comments:
Gostei muito desta crítica!
 
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